Salvar comida do lixo evita desperdício nas empresas, ajuda ações sociais e pode até dar lucro

Publicado em: 20/08/2024 às 11:05
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Ações em companhias no setor de alimentos reduzem custo de descarte, ajudam imagem e geram crédito tributário e novas receitas

Enquanto uma em cada 11 pessoas passa fome no mundo, cerca de 17% dos alimentos de residências, supermercados e restaurantes vão parar no lixo, segundo a ONU Meio Ambiente.

Para tentar eliminar essa contradição, empresas de diferentes segmentos do ramo de alimentação têm adotado iniciativas que podem reduzir o desperdício e ainda gerar ganhos para seus caixas e reputação. Para isso, têm a ajuda de startups que fazem a intermediação entre quem tem comida sobrando e quem precisa dela.

Uma delas é a Connecting Food, liderada pela engenheira de alimentos Alcione Pereira, de 46 anos. A empresa faz a ponte entre empresas que jogariam comida no lixo e ONGs e projetos contra a insegurança alimentar em todo o país. Os produtos são usados para enriquecer refeições.

A Nestlé é uma delas. Entre 2022 e 2023, a operação brasileira da gigante suíça de alimentos conseguiu reduzir os vencimentos de produtos nos seus estoques em 80%. Entre o primeiro semestre deste ano e o mesmo período do ano passado, nova redução, agora de 30%, com ajustes na armazenagem, negociações especiais com clientes focados em varejo popular e tecnologia, com a parceria com a Connecting Food.

A plataforma da startup também está a serviço de outras grandes empresas, como a fabricante de massas e biscoitos M. Dias Branco e os grupos supermercadistas Pão de Açúcar (GPA), Assaí e Carrefour. Os alimentos que sobram nessas empresas chegam a mais de 600 organizações em 300 cidades. Criada em 2016, a foodtech estima já ter superado 30 milhões de refeições complementadas.

— Em média são direcionados 400 quilos de alimento por semana por ponto de doação, ou seja, por loja. Essa quantidade seria capaz de alimentar cerca de 250 pessoas em um dia, considerando três refeições — calcula Alcione.

A parceria com a Connecting Food permite que todas as lojas do GPA tenham instituições cadastradas para doação, aponta Renata Amaral, gerente de Sustentabilidade e Investimento Social do GPA. Só no ano passado, foram mais de 1.700 toneladas de alimentos doados.

Todas as semanas, Janete Flores, de 57 anos, fundadora do Projeto Videira Eu Me Importo, busca frutas, verduras e legumes em uma unidade da rede Extra, do GPA, em São Cristóvão. Ela conta com a ajuda do marido, Flávio. A ONG atende cerca de 400 crianças, entre 3 e 15 anos, que moram na comunidade Chapadão, na Zona Norte do Rio, com reforço escolar no contraturno.

Janete observa funcionário do Extra recolher legumes maduros para doar para a ONG que ela lidera na Zona Norte do Rio — Foto: Gabriel de Paiva
Janete observa funcionário do Extra recolher legumes maduros para doar para a ONG que ela lidera na Zona Norte do Rio — Foto: Gabriel de Paiva

Enquanto estão na sede da ONG, em Coelho Neto, almoçam e fazem lanche da tarde. Sem a doação do supermercado, isso não seria possível, diz Janete:

— Todos são voluntários no projeto. Ninguém recebe um centavo, não temos subsídio do governo. A maioria dos alimentos usados no preparo das refeições vem do Extra. Os itens mais maduros vão direto para o almoço das crianças. Já o que vemos que pode durar um pouco mais doamos para as mães dentro da comunidade.

Também com a ajuda da startup a ONG “Sim! Eu sou do meio” recolhe doações de atacadistas de Nova Iguaçu e São João de Meriti, na Baixada Fluminense, duas vezes por semana. A gestora Débora Silva estima arrecadar em torno de uma tonelada de insumos semanalmente. Uma parte é doada a famílias carentes e outra vai para refeições feitas na própria instituição.

— Fazemos a seleção de frutas, legumes e verduras para atender em torno de 240 famílias por mês. Nossa nutricionista também elabora um cardápio de lanches servidos para 715 jovens após as atividades de cultura, esporte, educação e inclusão que promovemos — conta Débora.

Bom para o caixa

Parcerias com bancos de alimentos e instituições como o Sesc Mesa Brasil ajudaram o Carrefour a doar 4.500 toneladas de alimentos em 2024, o que pode resultar em uma dedução de 2% no Imposto de Renda (IRPJ) da empresa, conta Susy Yoshimura, diretora sênior de Sustentabilidade da rede.

Outras 20 mil toneladas que não foram consideradas aptas para consumo viraram ração animal. A meta para 2024 é chegar a 6 mil toneladas de alimentos enviadas para instituições sociais.

— Além disso, temos o Programa Únicos, em vigor desde 2017, que vende produtos in natura fora dos padrões estéticos das gôndolas, mas próprios para consumo, a preços 20% menores — acrescenta a executiva. — Para fomentar a circularidade, também aproveitamos alimentos em coprodutos, por exemplo usando o pão para fazer farinha rosca. E usamos tecnologia para a otimização dos estoques e previsão de vendas. Estamos iniciando o uso de inteligência artificial (IA).

Fabio Alperowitch, especialista em investimentos ESG (sigla em inglês para práticas ambientais, sociais e de governança) e sócio da Fama Investimentos, lembra que a boa gestão de resíduos reduz custos operacionais nas empresas.

No caso dos supermercados, diminiu a quantidade de alimentos que precisam ser descartados e, consequentemente, essa logística. Os gastos associados ao transporte e processamento de lixo são menores. Ele ainda observa que essa prática deixa as empresas mais eficientes, contribuindo para gerar mais lucros.

O ganho de reputação é outro benefício. Se por um lado, reduz-se o impacto negativo no meio ambiente, como a diminuição de gases de efeito estufa provenientes do descarte de alimentos em aterros, por outro, a companhia demonstra responsabilidade social e comprometimento com práticas ESG.

— Esses benefícios retornam para a companhia na forma de uma melhor imagem de marca, fidelidade do consumidor, atração de investidores e até mesmo vantagens competitivas no mercado — elenca.

Listada no Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da Bolsa de São Paulo, a B3, a M Dias Branco se comprometeu com a meta de reduzir em 50% o descarte de produtos acabados até 2030.

Entre janeiro de 2020 e dezembro de 2023, seu programa de doação de alimentos e combate à fome, chamado “Nutrir o amanhã”, beneficiou mais de 5 mil instituições indiretamente com a doação de 10 mil toneladas de comida. Por conta disso, a companhia também conseguiu um desconto no IRPJ.

— Nosso foco está no processo produtivo e na cadeia de abastecimento em relação a produtos acabados. Produtos com data de vencimento próxima a 30 dias são direcionados para doação e consumidos dentro da validade, evitando possíveis desperdícios e apoiando o combate à fome — diz Tiago Timbó, gerente de Comunicação, Cultura e Sustentabilidade da M. Dias Branco.

No fim de 2022, a M. Dias Branco criou uma política de descontos progressivos para produtos em função da proximidade de suas datas de vencimento.

Os mercados da rede Hortifruti Natural da Terra, controlada pela Americanas, tem uma metodologia no mesmo sentido. Para evitar o desperdício, a varejista vende cestas de alimentos com desconto no aplicativo Food to Save, no qual o consumidor compra às escuras pela vantagem financeira.

Também criou nas lojas a gôndola “Pegar ou pegar”, com itens ainda em boas condições, mas próximos da data de descarte, que são 50% mais baratos.

O que não vende, a rede doa para instituições sociais. Também usa parte desses perecíveis para reforçar as refeições de seus funcionários.

Quando o alimento passa do ponto adequado para o consumo, ainda há uma chance de ele escapar do lixo. Pode ser transformado em adubo por meio de uma parceria com o Ciclo Orgânico, empresa de coleta de resíduos orgânicos e compostagem.

É um caminho parecido ao adotado pelo Assaí para reduzir o descarte de resíduos em aterros. A rede de atacarejo destinou, em 2023, 2,4 mil toneladas à compostagem, um crescimento de 50% em relação a 2022.

Fábio Lavezo, gerente de Sustentabilidade e Investimento Social do Assaí, diz que outras 2,3 mil toneladas de alimentos ainda próprios para o consumo foram doados no ano passado para organizações parceiras de seu programa Destino Certo.

— O programa separa frutas, legumes e verduras sem valor comercial, mas em perfeito estado para consumo, e mapeia organizações que necessitam dessas doações, como creches, asilos, bancos de alimentos, entre outras organizações sociais de pequeno e médio porte — conta o executivo.



Fonte: Espaço PB – O Globo - Por Letycia Cardoso - Foto: Gabriel de Paiva/Agência O Globo: contato@espacopb.com.br

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