João Dantas, o homem que mudou o curso da história

Publicado em: 06/10/2020 às 17:05 - Atualizado em: 06/10/2020 às 17:38
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Por Alexandre Nunes

Vidas destruídas, ceifadas, famílias enlutadas. Este o saldo aferido por um processo político desastroso e eivado de perseguição, violência e resistência, ocorrido na década de 30 do século passado, na Paraíba. Seja lá onde aconteça perseguição e violência, não há vencedores ou vencidos, todos são perdedores.

Os embates de trinta não precisariam ser recontados, se não imperasse sobre os relatos dos acontecimentos o impedimento de pronúncia daqueles que tentaram contar uma história diferente da oficial. Há 90 anos, precisamente, no dia 6 de outubro de 1930, a Casa de Detenção de Recife foi palco da morte do advogado paraibano João Duarte Dantas, 42 anos, e do engenheiro pernambucano Augusto Moreira Caudas, também na quadra dos 40 anos, cunhado de Dantas, dois jovens senhores de famílias tradicionais daquela época. Eles foram chacinados na prisão por oito homens ditos "revolucionários", em vingança ao assassinato de João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, então governante da Paraíba, ocorrida em 26 de julho de 1930, na Confeitaria Glória, também em Recife.

João Dantas, que teve uma vida breve, intensa e pulsante, foi tragado pelo turbilhão político-ideológico que assolou a Paraíba e o Brasil no ano de 1930. Segundo escreveu o professor Lúcio Vilar, no prefácio do livro "João Pessoa - Uma biografia", do jornalista Fernando Melo, João Dantas sucumbiu em meio a uma trama tingida pelos densos e traiçoeiros ingredientes da política, da paixão e do ethos cultural de um povo que não hesitava na hora de lavar a honra com sangue e morte. "João Dantas teve sua intimidade e conduta pessoal devassadas em vida e, notadamente, depois de morto, quando então foi mitificado como "bandido sanguinário", sem direito a defesa", escreveu Vilar.

Na verdade, João Dantas era uma pessoa cordata e austera e, segundo relata o jornalista Fernando Melo, existem no livro “Poder, Alegria dos Homens”, de Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, os depoimentos de duas figuras respeitadíssimas da época, o ministro José Américo de Almeida e o desembargador Flóscolo da Nóbrega, dando conta que Dantas era um homem de bem e um advogado dos melhores da Paraíba.

Longe do maniqueísmo, maquiagem e desatinos de uma escrita negativa sobre os personagens centrais da tragédia de 1930, fomos em busca das memórias preservadas pela transmissão oral, livros e documentos guardados pela família Dantas, para resgatar as razões que levaram uma pessoa pacata e um advogado brilhante como João Dantas a um extremo ato motivado por violenta emoção, resultando num assassinato que foi usado como um estopim para justificar um movimento armado que depôs o presidente da República Washington Luís, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e colocou na presidência o gaúcho Getúlio Vargas.

A sobrinha de João Dantas, Eda Dantas, comentou que seu tio era uma pessoa muito discreta, não bebia, não fumava e não jogava. "Taxaram João Dantas de violento, mas isso ele não era. Era um homem muito culto e era adepto da doutrina espírita, assim como toda a minha família também era espírita. O que fez João Dantas cometer o ato da Confeitaria Glória foi exatamente a perseguição, quando a coisa chegou ao extremo e ele não aguentou mais. É aquela coisa que qualquer um faz, não venha dizer que não faz não, porque qualquer um de nós é capaz de cometer uma loucura, dependendo da hora", justificou.

O major Delmiro Dantas, primo em segundo grau de João Dantas, faz alusão a um telegrama enviado por João Dantas a João Pessoa, logo após tomar conhecimento da prisão ilegal do irmão Joaquim Dantas. O telegrama parte de Recife, datado de 1° de junho de 1930, com o seguinte conteúdo: "Acabo receber confirmação continua incomunicável Piancó sob vistas vosso chefe policia meu irmão Joaquim sequestrado vossa ordem, desde 23 de maio, enquanto fizeste polícia informar falsamente Tribunal ter sido posto em liberdade. Agora sei ordenastes incêndio fazenda meu pai de cuja realização sois bem capaz, pois mesmo fez vossa polícia fazenda Santo Agostinho pertencente minha família. Matai, depredai, vontade, aproveitando cômoda oportunidade satisfação vossos instintos, mas ficai certo nenhum Dantas se amedrontará nem se humilhará diante vosso capricho. E uma vez vosso obliterado senso moral, obscura consciência jurídica vos permitem tais desatinos, apesar longo exercício magistratura, sou forçado lembrar, sem estardalhaços tão do agrado vosso temperamento teatral, que felizmente tendes filhos e juntamente com eles respondereis pelo que sofrer minha família, respondendo também Estado pelos prejuízos materiais nos causardes. Saudações - João Duarte Dantas". Delmiro Dantas lembra que João Dantas era um homem de brio e jamais diria o seguinte: "Se mexer comigo minha família é numerosa e vai para cima de você", ao contrário, ele diria: "Se você mexer com a minha família, quem vai lhe pegar sou eu".

A situação tornou-se mais delicada quando do sequestro do seu irmão Joaquim Dantas, preso por um mês em Piancó. Outro fator de acirramento foi o episódio da invasão do escritório de João Dantas na Rua Duque de Caxias pelo delegado Manoel Moraes. Esse acontecimento foi a gota d'água para João Dantas, já exilado em Recife, se encolerizar com a situação. Foram dias de intensa tensão até que houve o desfecho fatal de 26 de julho.

No livro "Porque João Dantas Assassinou João Pessoa", Joaquim Moreira Caldas, irmão do cunhado de João Dantas, Augusto Moreira Caldas, afirma, com a ortografia da época, o seguinte: "João Dantas, affrontado ao extremo, já saturado do ódio, que a campanha, sórdida e pusilânime, movida contra elle e a sua família, Ihe fez crear; vilipendiado por seu rancoroso inimigo, que não se cançava de mandar atacalo, pela imprensa official, com injurias, affrontas supremas, tremendos insultos, de uma maneira desregrada; não podendo mais supportar o peso da humilhação que o abatia aos olhos dos seus concidadðes, que o esmagava, apontando como era - ladrão e cangaceiro, scelerado e bandido, corrupto e desleal - só tinha uma solução a tomar, a que a dignidade do homem impoe - desaggravo da sua honra ultrajada".

Um dia antes da vindita ocorrida na Confeitaria Glória, em 25 de julho de 1930, "A União" publicava uma carta que atingia em cheio o pai de João Dantas, com o seguinte teor: "O chefe da quadrilha é, como se verá, o velho Franklin, que no Rio, acocorado à sombra do "leader Villaboim e outros próceres perrepistas arranjava as coisas de modo que os seus filhos e agregados daqui do Estado pudessem commodamente desfructar a vantagem dos dinheiros mal adquiridos. Num desses documentos, em dado momento, vê-se o offerecimento dos pusilânimes e ladravazes membros da familia sinistra para a organização de grupos de cangaceiros que assaltassem as forças policiaes idas daqui para Princeza, isso porém sob a condição do velho e desbriado desembargador Heráclito lhes fornecer o munmerário suficiente". Joaquim Moreira Caldas reforçava que "eram commentários desta natureza que o governo e seus auxiliares directos e de confiança bordavam em torno dos dizeres das cartas que publicavam, deturpando-lhes vezes muitas o sentido, quando não eram adulteradas para melhor effeito produzirem".

De acordo com registro de Joaquim Moreira Caldas, quando João Dantas dava, perante a comissão judiciária, o seu depoimento, confirmando tudo que, na polícia, havia dito: "Sou eu o único responsável pelo ato delituoso que conscientemente pratiquei", - "Mas, Dr. Dantas, O Sr. cometeu o maior crime do mundo!" - "Sim, Dr. João Paes, depois que recebi a maior afronta do Universo".

Todos esses relatos mostram uma relação de poder desequilibrada, com um lado querendo exercer todo o poder sobre o outro. Como analisa o filósofo Michel Foucault, esse proceder só deixa para o outro, a possibilidade de "se matar, de pular pela janela ou de matar o outro". Se existe a violência nas práticas de governo exercidas sobre os governados, também ocorre a resistência no campo de ação do sujeito livre, às vezes também com o uso da violência.

Quem foi João Dantas

João Duarte Dantas veio ao mundo na cidade de Mamanguape, no dia 12 de maio de 1888, na véspera do dia da Abolição da Escravatura, e não no dia 12 de junho do mesmo ano, como aparece em alguns livros. A informação é de sua sobrinha Eda Dantas, filha de Franklin, irmão mais novo de João Dantas. Eda conta que quando ele nasceu, os Dantas já tinham se antecipado aos efeitos da Lei Áurea, e já não havia escravos nas fazendas da família.

João Dantas era filho do médico e agropecuarista Franklin Dantas Correia de Góis e de Júlia Veloso, filha única do comerciante e fazendeiro João Rodolfo Veloso de Azevedo. Até os 16 anos de idade, João Dantas foi criado e educado por sua avó D. Joaquina Veloso de Azevedo, senhora da elite social de Recife, de admirável bom senso e espírito esclarecido, conforme informa o jornalista Fernando Melo.

"O casal Veloso de Azevedo vivia num meio social festivo, decorrente da própria riqueza e da vida florescente de Mamanguape, que desde os idos de 1850 mostrou-se próspera, com as zonas do brejo, caatinga e sertões todas tributárias do comércio dessa cidade. Grandes firmas exportadoras do Recife levaram então filiais e agências para a praça nova", relata Melo, no livro "João Dantas - Uma Biografia".

Vale ressaltar que João Dantas fazia parte de uma família muito influente, poderosa e de prestígio político, principalmente no tempo da Monarquia e no início da República. Já pelos idos de 1840, um membro da Família Dantas, Lourenço Dantas Correia de Góis foi deputado provincial. Em seguida, 40 anos depois, o avô de João Dantas, Manoel Dantas Correia de Góis também foi eleito deputado provincial. Manoel foi presidente da Assembleia em 1885 e também foi eleito deputado geral e deputado provincial mais uma vez. Em 7 de junho de 1889, o avô de João Dantas, assumiu a presidência da Província da Paraíba. No mesmo ano, o filho de Manoel Dantas, o médico Franklin Dantas Correia de Góis, pai de João Dantas, foi eleito deputado geral. Ele foi o sucessor do pai na chefia da família e na liderança política na região de Teixeira, incluindo os municípios circunvizinhos.

João Dantas foi educado num ambiente de prosperidade e, aos 12 anos, cantava e recitava ao piano e já dançava com desenvoltura. Seus estudos têm continuidade na Capital da Paraíba, precisamente no Lyceu Paraibano, quando tinha 16 anos. Ele concluiu em 1907, o curso de Humanidades. Em seguida fez o curso superior na Faculdade de Direito do Recife. Dantas conseguiu o diploma de bacharel em Direito, em março de 1914, aos 25 anos. Ele começou sua atividade jornalística ainda em Pernambuco, no jornal do professor de Direito, Henrique Millet. No jornalismo paraibano, Dantas assinou, num jornal da época, a coluna Risos e Frisos, que tratava o cotidiano da política do seu tempo com o traço característico da ironia e humor ferinos. João Dantas teve neste campo uma atuação mais contundente quando do embate dos Dantas, por meio do “Jornal do Commercio”, e o então presidente João Pessoa, através de “A União”.

"O jornal paraibano publica os artigos "A perversidade e a cobardia dos Dantas", "A physionomia moral de um calumniador", "Cangaceiro de gravata I - Duarte Dantas", "Caluniador e poltrão", "Cangaceiro de gravata II - Franklin Dantas", "A projeção de um nome" e "A serviço da delação - João Duarte Dantas". (Respectivamente edições de A União, Parahyba, 4, 13, 15, 25 e 29, junho de 1930.) Os Dantas respondem com os artigos: "As voltas com um doido I”, "As voltas com um doido II", "As voltas com um doido III" e "O doido da Parahyba". Os três primeiros artigos são de João Dantas e o último de José Dantas. (Jornal do Commercio, Recife, edições de 7, 15, 17, 22 de junho de 1930.)", detalha Fernando Melo, no livro "João Dantas - Uma biografia".

Quando ainda era acadêmico de Direito, João Dantas participou de uma coluna armada que ocupou a cidade de Patos, chefiada no Sertão da Paraíba pelo seu pai, Franklin Dantas e por Augusto Santa Cruz. O que motivou João Dantas a participar da coluna foi o natural alinhamento aos princípios defendidos pelos seus ancestrais, por isso ele largou temporariamente os livros para pegar em armas em 1912, aos 24 anos, comandando uma coluna no levante contra o Governo João Machado. Esse episódio foi o ponto inicial para a família Dantas começar a se indispor politicamente com o Epitacismo.

Segundo relato de Fernando Melo, João Duarte Dantas nunca exerceu função pública. Após formado, ele regressa a Mamanguape e, no fórum local, se dedica à advocacia e a cuidar das fazendas do pai na região, porque o seu genitor a esse tempo já residia no município de Monteiro. Ele permaneceu em Mamanguape até o ano de 1920, quando se transferiu para a  Capital do Estado, onde firmou-se como um dos mais importantes e competentes profissionais do mundo jurídico paraibano. Como advogado da Agência do Banco do Brasil na Paraíba, recebeu elogiosas referências de sua atuação.

Maria de Lourdes Luna, que trabalhou muitos anos assessorando José Américo de Almeida, publicou a plaquete "João Dantas e Anayde Beiriz, vidas diferentes e destinos iguais", onde faz alguns registros interessantes acerca do cidadão João Duarte Dantas.  Ela conta que ouviu de Severino Diniz, um rábula atuante no Fórum da Paraíba, na década de vinte, que João Dantas era de fino trato, e dele recebera, com inexcedível boa vontade, ensinamentos e orientação, ao lhe solicitar. "Bravo na defesa dos seus constituintes, no entanto, não se registrava desacato às autoridades, quando contraditado nos pleitos, sob sua responsabilidade, que tramitavam na Justiça. Também nunca se ouvira falar de grosseria ou deslealdade de João Dantas para com os que o cercavam no meio urbano", complementou.

Ela também registrou que outro liberal convicto, Severino Cândido Marinho, escrivão do Poder Judiciário, confirmava a conduta ilibada de João Dantas, com quem mantivera proximidade, por conta do seu oficio. Como gramático, realçava a erudição vernacular de João Dantas, ao expor argumentos jurídicos, na instrução dos processos. Lourdinha Luna, certa feita, ouviu de José Américo o seguinte comentário sobre perfil físico de João Dantas: "Estatura mediana, moreno, olhos esverdeados, cabelos ralos nos cantos. O gênio forte, era capaz de todas as reações".

A escritora acrescentou que, por sua natureza, João Dantas não tinha vícios. José Américo dizia que nunca o ouviu cantarolar ou assobiar, já que foram colegas de juventude e associados como operadores do Direito e tiveram juntos muitos momentos de convivência. José Américo, João da Matta Correia Lima e João Duarte Dantas formavam um trio de advogados que tinham clientes não só na Capital como no interior do Estado e incursionavam tanto no cível como no penal. Algumas vezes pernoitavam juntos nas sedes de comarcas interioranas.

"José Américo e João Dantas esperavam o sono às voltas com a revisão dos autos, preparando-se para os embates do dia seguinte. Ainda bem moço o autor de “A Paraíba e seus Problemas”, já tinha a visão fatigada e a leitura das peças, à luz de candeeiro, ficava a cargo de João Dantas. Revista as matérias de maior peso, recolhiam-se às suas redes, armadas na sala da frente, onde o calor e a muriçoca eram menos agressivos", escreveu Luna. E acrescentou: "Com o interesse de quem gostava da matéria, João Dantas lia sobre doutrina e jurisprudência, sem negligenciar a literatura contemporânea. As obras de maior evidência, comentava com a segurança de quem sabia onde pisava".

Fernando Melo explica que apesar da formação de fino trato, educado sob os cuidados de uma avó que o fez logo cedo aprender piano e a cantar, João Dantas, que poderia ter sido um amante das artes, tornou-se um estudioso das letras jurídicas. Ele e João da Mata Correia Lima, seu íntimo amigo, foram na década de 20 os advogados dos mais respeitados nos tribunais paraibanos.  

Mesmo com modos retraídos, João Dantas era um cidadão de muitas amizades, sendo o centro de gravitação delas, embora por têmpera ou disciplina, não era assíduo nos ambientes sociais ou dissolutos, tão pouco em mesas de bares. "Anatildes Morais e Adamantina Neves, ao rememorar João Dantas dizem que na convivência social era cortês, educado, além de bonito e charmoso... Os olhos claros, sobressaindo numa fisionomia de linhas bem definidas, fizeram suspirar um bom número de donzelas recatadas. Em harmonia com os atributos físicos, mostrava um caráter reservado, pudico e integro, o homem do fio do bigode, como o definiu José Américo, no livro de memórias o "Ano do Nego". Garboso, descendente de importante linhagem, de considerável mediania econômica e financeira, era cobiçado pelas moças ou, mais precisamente por suas mães, com quem sonhavam casar as prendadas filhas", escreveu Maria de Lourdes Luna.

Nayara Dantas, da nova geração da família Dantas, enfatizou que João Dantas defendeu o homem sertanejo. Homem culto, de formação e educação clássica, que merece ter sua verdadeira história revelada e seu nome limpo, corrigindo a imagem vergonhosa que foi criada para satisfazer a elite e os poderosos da época. "Tive minhas primeiras experiências com a história de João Dantas ainda na escola, quando estudamos a história da Parahyba. Muitas vezes, por conhecer minha família, a professora chegava a me fazer indagações, para que eu pudesse falar sobre os Dantas. Assim, para entender esse processo busquei os conhecimentos de meu pai, Pedro Dantas, que tinha muito orgulho da história da família. Ele fez relatos diferentes daqueles contidos nos livros. E sempre dizia que ali era contada uma única versão, a que transformava João Dantas em um carrasco, homem perigoso e desonesto", observou.

Ela explicou que João Dantas teve sua imagem violentamente enxovalhada, levando junto toda a família Dantas. "Até então homem honesto, íntegro, sem vícios, um advogado renomado, seu defeito: fazer oposição ao governante de então. Isso foi o bastante para que sua vida fosse revirada, a família perseguida, culminando com sua prisão e assassinato. Sua vida pessoal foi exposta publicamente, o que o levou ao assassinato como meio de lavar sua honra, como era comum na época. Como pessoa de importância política, sua história entrelaçou com a história da Parahyba e do Brasil. Muitos inocentes foram atingidos, entre eles, seu cunhado Augusto Moreira Caldas, morto em sua companhia, na cadeia, e João Suassuna, covardemente assassinato pelas costas a mando de pessoas ligadas ao outro lado", analisou.

Nayara estacou que muitos Dantas tiveram suas casas invadidas e foram forçados a fugir de seus locais de origem por perseguição política. "Hoje, carrego o sangue dessa família guerreira, que descende de pessoas que enfrentaram com honestidade e coragem seus algozes, defendendo seus ideais e convicções políticas", concluiu.

Anayde Beiriz: A extensão de uma tragédia

A professora Anayde Beiriz começou a namorar com João Dantas em 1928, aos 23 anos. Segundo registrou Maria de Lourdes Luna, na plaquete publicada em 1995 por A União Editora, na época, "João Dantas era um quarentão solteiro, estatura mediana, moreno, olhos esverdeados, cabelos ralos nos cantos, um belo partido para as eleitas da sociedade. Mas preferiu namorar moça simples, filha de um servidor do órgão oficial do Estado, fisgado que foi pela personalidade forte da professorinha". A autora também registrou um depoimento que ela considerava insuspeito, por vir da parte da esposa de Oswaldo Pessoa, irmão do presidente João Pessoa, que teve um certo convívio estudantil com Anayde e que enalteceu o caráter daquela normalista que se destacava entre as demais pela sua altivez e inteligência.

Segundo escreveu Lourdes Luna, José Américo, nas poucas vezes que avistou Anayde, achou-a interessante, porque reunia aos dotes físicos, atributos de inteligência, malicia e graça. A escritora acrescentou que Anayde era de "estatura mediana, morena, olhos negros expressivos, lábios carnudos e nariz afilado. O conjunto fisionômico não expressava formosura, entanto, não passava despercebido. O penteado de pastinha cobria-lhe parte da face esquerda, como se pode no cotejar com as fotografias. Vaidosa, vestia-se com bom gosto, dentro do estilo dos anos vinte, que tinha na melindrosa, de corpo inteiro e saia curta, o must da moda brasileira. Com elegância, equilibrava-se nos saltos Luiz XV e caminhava levitando, como se tivesse asas nos pés". 

Anayde nasceu em 18 de fevereiro de 1905 e era filha do funcionário do jornal A União, José da Costa Beiriz, e de Maria Augusta Azevedo Beiriz. Ela completou seus estudos na Escola Normal, diplomou-se em 1922, aos 17 anos, e lecionou para crianças e adultos na Colônia e Pescadores de Cabedelo.

Dantas era filiado ao Partido Republicano Paulista (PRP), que fazia oposição ao então governante da Paraíba, João Pessoa. Com o acirramento das lutas políticas na Paraíba, principalmente pela ligação de João Dantas ao líder da Revolta de Princesa, José Pereira, que se confrontava diretamente com João Pessoa, passou a ser perseguido e obrigado a se refugiar em Recife. A partir daí o seu relacionamento com Anayde continuou por meio de cartas.

Quando João Dantas foi recolhido à Casa de Detenção de Recife, Anayde Beiriz, com apenas 25 anos, passou a ser alvo de perseguição. Com a prisão de João Dantas, Anayde ficou na casa de sua prima Didi, que morava em Recife, na Avenida Caxangá. Segundo relato da sobrinha Ialmita Beiriz, Anayde ia visitar João Dantas na Casa de Detenção, sempre acompanhada pelas primas Didi e Zuleide. "Numa dessas visitas, ela passou antes na casa de Augusto Caldas, cunhado de João Dantas e também prisioneiro na Casa de Detenção, e a esposa de Augusto sentindo o quanto Anayde estava fragilizada insistiu para ela tomasse pelo menos algumas colheres de leite, o que foi uma dificuldade. Ela já estava se alimentando mal", detalhou a sobrinha.

Didi teve a casa invadida por policiais à procura de Anayde, já que era nesta casa que ela sempre se hospedava quando ia à capital pernambucana. Anayde não foi presa porque havia dado uma saída, da qual não mais retornou. Ialmita guarda uma carta da prima Didi, que mudou para o Rio de Janeiro, onde conta a história da invasão dos policiais à procura de Anayde em sua casa, em 1930. Anayde faleceu por envenenamento no dia 22 de outubro de 1930, no Asilo Bom Pastor, no bairro da Madalena, em Recife, e sua morte foi noticiada no Jornal do Recife, na edição da quinta-feira, 23 de outubro de 1930. 

Augusto Caldas: A morte de um inocente

Joaquim Moreira Caldas inicia a dedicatória ao seu irmão Augusto Moreira Caldas, no livro "Porque João Dantas Assassinou João Pessoa", nos seguintes termos: "A memória do meu infortunado Augusto, vítima da lâmina dos sicários que lhe beberam o sangue, tentando, antes, enxovalhar-Ihe a honra a pervertida imprensa incendiária, esta página de dor e de muita saudade".

O engenheiro Augusto Moreira Caldas, na faixa dos 40 anos de idade, foi incidentalmente envolvido no inquérito que apurava a morte de João Pessoa. É que quando João Dantas viu o anúncio da visita do então presidente da Paraíba a Recife, nas páginas de A União, e retornou para a casa do cunhado Augusto, onde estava hospedado, para apanhar um revólver e sair a procura de João Pessoa, este o acompanhou.

Eda Dantas explicou que o marido de sua tia Jacintha Florisbela Dantas Caldas acompanhou João Dantas apenas com o intuito de ver se evitava algo mais grave, mas não evitou, sendo envolvido na tragédia de forma totalmente inocente. Preso preventivamente, Augusto Caldas, a pedido do promotor Cândido Marinho, viu-se denunciado, por este mesmo acusador, no termino dos trabalhos. "E o pobre do Augusto morreu inocente e deixou minha tia com três filhos pequenos, tudo criancinha, e sofreu o pão que o diabo amassou, coitadinha, para criar esses três filhos. Minha tia era linda, mas não contraiu outro matrimônio. Eu lembro muito dela ainda jovem, quando eu era criança. Ela envelheceu bonita. Ela tinha dois filhos homens e uma mulher, Ligia, que morreu faz alguns anos. Eu tinha muito contato com essa prima", comenta Eda Dantas.

Joaquim Moreira Caldas, em seu livro publicado na década de 30, chama o promotor que incriminou seu irmão de "vil, desprezível, perverso e inconsciente, que tudo envidou para arranjar cúmplices, orientando-se, assim, pela opinião dos interessados na causa". E acrescenta Joaquim: "Ele, em verdade, é o maior responsável por tudo quanto a Augusto Caldas sucedeu. Interpelado, há bem pouco tempo, pelo Sr. Coaracy de Medeiros, no Rio de Janeiro, que lhe perguntara: "Candido Marinho, como é que você denunciou do Caldas, um rapaz que estava inocente naquele caso? - respondeu, com a mais revoltante e imbecil displicência: "Acredite, Coaracy, que o fiz, de fato, sem base. Denunciei-o, porque tive medo de morrer".

O geólogo Augusto Franklin Ferreira Dantas Caldas, neto de Augusto Moreira Caldas e sobrinho-neto de João Duarte Dantas, traçou um breve perfil da família Caldas. "O pai do meu avô era bacharel em Direito. O irmão do meu avô era médico e ele engenheiro. Eles eram proprietários acredito de uma das primeiras agências de automóveis do Nordeste. Era uma família formada por médico, comerciante, engenheiro, não tinha nada de conhecimento e vivência com as famílias do Sertão. A comunicação não era tão fácil naquela época", relatou.

Augusto disse que seu avô conheceu Jacintha Dantas quando trabalhava na Great Western. "Nesse período, ele participou da implantação de alguns ramais de Rede Ferroviária. na verdade, ele foi fazer um trabalho na região de Monteiro e, em função desse trabalho de implantação da Rede Ferroviária, lá no Cariri paraibano, conheceu a minha avó e eles terminaram casando. Tiveram filhos que foram morar em Olinda, cidade vizinha a Recife, local onde ocorreu o desfecho em 1930", complementou.

Apesar de ter nascido vinte e poucos anos depois que o avô havia falecido, portanto já bem distante dos fatos, Augusto Dantas Caldas, explicou que como sua avó Jacintha viveu até 86 anos, ele chegou a conviver bastante com ela. "Éramos muito próximos. Era muito sofrimento, por conta das duas coisas que ela nunca esqueceu, a morte da filha Beatriz, ainda pequena, e a morte do esposo. Ela ficou viúva jovem e muito bonita, mas não casou, se dedicou aos filhos. Passou por um sofrimento muito grande, pelo amor que ela tinha ao meu avô, mas pela perda da filha também", constatou.

Ele revelou que a família Caldas, que era fixada em Pernambuco, não tratava do assunto da tragédia que envolveu João Dantas e Augusto Caldas. "O meu avô foi sepultado em Recife, na Igreja da Conceição. Quanto à questão de João Dantas, só podia ter o desfecho que teve, porque qualquer pessoa em igual situação, ou seja, qualquer pessoa que tivesse sua propriedade incendiada, as pessoas da família tendo que sair de suas terras para se protegerem, seu escritório de advocacia sendo arrombado, as cartas de sua namorada expostas publicamente, com conotações imorais bem acima da realidade, faria o mesmo", argumentou.

Não houve suicídio

O jornalista Fernando Melo disse que é importante sempre enfatizar que João Dantas não cometeu suicídio e sim foi assassinado. A farsa do suicídio começou a ser desvendada quando foi descoberta a fotografia denunciadora do crime, ou seja, a primeira chapa batida pelo fotógrafo Luiz Pierreck, que foi o encarregado de tirar as fotos dos cadáveres de Dantas e Augusto na sala onde se desenrolou a dupla morte. A verdade é que alteraram a cena do crime, para dar uma conotação de suicídio, versão propagada com ênfase na época.

Eda Dantas contou que, após Luiz Pierreck haver feito a primeira foto, fizeram uma maquiagem, limparam e arrumaram tudo e mandaram tirar outra fotografia. "Acho que o fotógrafo nunca tirou aquilo da cabeça, por isso guardou a foto verdadeira no cofre", revelou. Fernando Melo complementa informando que, após o suicídio do fotógrafo, a fotografia denunciadora do crime foi encontrada no cofre particular do suicida, num misterioso invólucro bem lacrado. Vinha a lume a primeira chapa que havia sido "batida" antes da mudança de cenário, revelando a tragédia em sua completa nudez. Também houve manipulação da necropsia feita em João Dantas e Augusto Caldas, conforme denunciou Joaquim Caldas em seu livro. E ele mesmo esclarece: "Aquela primeira prática médico-legal, em vez de se constituir uma inspeção minuciosa, bem examinada em seus múltiplos e mínimos detalhes, foi uma farsa indecorosíssima".

Outro fato lembrado por Fernando Melo tem a ver com o cangaceiro Antônio Silvino, que disse haver testemunhado a eliminação dos dois presos na Casa de Detenção de Recife, já que estava preso em cela próxima onde estavam recolhidas as duas vítimas ali imoladas. Da cela de Antônio Silvino, contígua ou próxima à enfermaria em que João Dantas e Augusto Caldas se achavam trancafiados, ele a tudo testemunhou. João Dantas e Augusto Caldas foram executados logo após a tomada do Recife pelas forças rebeldes da chamada "Revolução de 30". Augusto Caldas morreu inocente, sem ter nada a ver com a história. Segundo narrou Fernando Melo, nem mesmo diante dos seus executores perdeu Dantas aquele sangue frio, aquela coragem selvagem. As suas últimas palavras foram: "Matem-me! Mas nunca me verão implorar piedade".

Repercussão na cultura

Os acontecimentos ocorridos em 1930 tiveram repercussão no cinema com o filme Parahyba, Mulher Macho, uma produção brasileira de 1983 dirigida por Tizuka Yamazaki. O filme do gênero drama histórico-biográfico é baseado em livro "Anayde Beiriz, Paixão e Morte na Revolução de 30", do escritor José Joffily. E também repercutiram no teatro com a peça “De João para João”, do escritor e dramaturgo paraibano Tarcísio Pereira.

A peça tem a participação de apenas dois atores em cena, Tarcísio Pereira como João Pessoa, e Flávio Melo como João Dantas. Toda a trama se desenvolve durante o trajeto da bala. Baseado em uma pesquisa aprofundada, a narrativa é uma verdadeira radiografia do ocorrido na Confeitaria Glória, no dia 26 de julho de 1930. "É um diálogo entre os dois personagens, do começo ao fim da peça. Inicialmente, a minha ideia era escrever a peça só com João Dantas, ou seja, um monólogo, já que a minha fonte de inspiração era baseada no artigo "As voltas com um doido", de Dantas. O artigo era de uma teatralidade muito grande. No momento em que ele estava escrevendo esse texto, a carga de ódio e a revolta que ele sentia tinha uma dramaticidade pronta para uma expressão teatral", esclareceu Pereira.

Tarcísio explicou que em determinado momento começou a perceber que a peça, como monólogo, estava ficando muito cansativa. "Daí foi quando pensei em dar voz também a João Pessoa, para dar mais dinamismo à peça. Resolvi parar tudo e fazer uma pesquisa mais intensa e me debrucei nos livros, jornais da época e artigos, e minha peça "De João para João" terminou sendo um diálogo muito intenso entre os dois personagens, a partir das acusações que João Dantas faz e João Pessoa responde, por isso tem os dois personagens em cena", justificou.

O ator de teatro e cinema Flávio Melo disse que teve muito trabalho para compor o personagem de João Dantas, por causa da falta de informações mais detalhada sobre as características físicas de João Dantas, principalmente porque só teve acesso a uma fotografia dele. "Quando Tarcísio me apresentou o texto, comecei a pesquisar. Eu e Tarcísio  começamos a ver os jornais antigos, fomos aos arquivos para ver até as indumentárias e os móveis da época. Pesquisamos sobre o figurino, cada detalhe dos objetos de cena, e  procuramos trabalhar um linguajar que fosse próprio da época e com o rebuscamento adequado, por se tratar da representação de dois homens com uma boa condição social e intelectual", detalhou.

Roteiro turístico rural dos Dantas

Ainda dentro dos 90 anos de morte de João Duarte Dantas, que ocorrerá em 2021, diversos membros da Família Dantas idealizaram um projeto para alavancar o turismo rural, por meio de um roteiro ligando as fazendas da família Dantas, em Pernambuco e Paraíba, e ao mesmo tempo repassando para os visitantes, durante o percurso, a história da Revolução de 1930.

Ana Dantas, uma das idealizadoras do projeto e proprietária da Fazenda São Pedro, que fica a 18 Km da sede do município de São José do Egito, em Pernambuco, explicou que a  propriedade tem um potencial para apresentar, no roteiro, diversas opções no universo do turismo rural, tais como: visita a vulcão abortado; túmulo de João Dantas; capela construída no ano de 1695; inscrições rupestres; e churrasco de carneiro incomparável a qualquer outro, numa culinária regional de muita qualidade.

Dalvanete Dantas, outra entusiasta na concepção do projeto, explicou que cada fazenda do roteiro tem o seus aspectos históricos e turísticos que precisam ser conhecidos e visitados. A Fazenda Carnaúba, em Taperoá, é um exemplo de sucesso no lado da pecuária, com a marca do saudoso Manelito Dantas, e na parte cultural com o legado deixado por Ariano Suassuna. "A Fazenda Carnaúba tem a Pedra Jaúna, um grande ponto turístico que está sendo preparado por Manu Dantas, filho de Ariano. Tem ainda a parte da queijaria. É bastante coisa para ser vista", ressaltou.

Dalvanete lembrou ainda que o roteiro prevê também a inclusão do museu cuidado por Magali Dantas, no município de Teixeira. "Magali Dantas é uma pessoa que detém muita coisa da história de 1930. Ela sabe de tudo, ela tem um legado cultural muito grande. O roteiro também inclui o Pico do Jabre, o ponto mais alto da Paraíba, o Casarão dos Dantas, de minha responsabilidade, que é pousada, restaurante e museu. Tem também a Fazenda São Paulo, com dados históricos incríveis e também por ser o único local que tem a única senzala em pé que se tem notícia no Sertão todo. A “São Paulo” e a “São Pedro” são as duas fazendas mais tradicionais na história dos Dantas. O roteiro termina no Casarão dos Pereira, em Princesa Isabel, que não é da família Dantas, mas de pessoas que são muito ligadas aos Dantas, através da história. É muita coisa boa para ser vista nesse projeto idealizado por mim, Ana Maria, Nayara, Magali e outros membros da família Dantas", finalizou.

Confira na galeria as fotos da família Dantas. 



Fonte: Espaço PB com A União – Redação: contato@espacopb.com.br

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