
A tristeza tomava conta do lugar. Murmúrios, lamentações contidas e alguns choros soluçantes. Tapinhas nas costas e apertos de mão. Vários e intermitentes. Um entra e sai de gente bem vestida naquela casa antiga, mas bem conservada e ornamentada elegantemente, chegando ao refinamento. Ramalhetes, flores solitárias e algumas coroas com mensagens de despedidas e saudações ornamentavam os cantos da sala onde o caixão, até modesto, repousava sob um crucifixo prateado e ladeado por suportes onde duas grossas velas bruxuleavam, mas não se apagavam.
O cheiro de velário e do cravo de defunto pairava no ar, em meio às conversas e cochichos daquelas pessoas parecidas ter saído de uma peça teatral preparada e ensaiada. Uma gente que eu nunca tinha visto. Pelo menos a grande maioria. Algumas delas até havia um dia escutado o nome nas conversas dos adultos da minha casa. De conhecidos mesmo só a minha mãe Elza, meu pai Jorge e minha avó – a dona Dica. Tínhamos saído de Três Corações para a cidade de Campanha para acompanhar o velório e depois o enterro (engraçado que eu só me lembro da cerimônia de despedida, não me recordo do sepultamento). Eu tinha entre dez e onze anos.
O falecido, já em idade bastante avançada, era Titio Geninho (acho que o nome dele era Eugênio). Ele era tio da minha mãe, um dos irmãos da Vó Dica. Sempre havia ouvido minha mãe citar Titio Geninho, mas nunca o conhecera vivo. Estava sendo “apresentado” a ele naquele dia. Eu, meio atordoado em meio aquele clima mórbido, e ele ali, inerte naquela urna abarrotada de cravos, parecendo estar chateado com a movimentação toda – pelo menos era o que eu interpretava ao fitar seu rosto redondo e pálido.
Não haviam outras crianças no recinto. Só adultos – maioria gente idosa – e uns poucos jovens. Fui ficando incomodado e entediado, mesmo abocanhando alguns pães de queijo, um punhado de brevidade (biscoitinho mineiro com gosto de casa de vó) e ter sorvido uns goles de um chá que até hoje não identifico do que era. Fui disfarçando, fugindo dos olhares de minha mãe e saindo de fininho em direção à porta da rua... Aliás, uma rua bastante bonita, calçada por pedras centenárias e bem arborizada. Árvores frondosas escondiam os frontispícios, alpendres e jardins com cercas ou muros baixos em quase todas as residências do local (alguns casarões), que parecia um cenário daqueles filmes de época.
Minha mãe nasceu em Campanha. Aliás, essa cidade é o berço dos Rezende da minha família. Esse município histórico de Minas Gerais, hoje com cerca de 16 mil habitantes, foi criado como freguesia por carta régia em 1752. Subordinado ao município de São João Del Rei, figurou como vila a partir de 20 de setembro de 1798. O status de cidade surgiu em 9 de março de 1840. Uma curiosidade: Euclides da Cunha escreveu os primeiros capítulos do livro ‘Os Sertões’ em Campanha, onde nasceu um de seus filhos. Há quem diga que, se a Inconfidência Mineira tivesse logrado êxito, Campanha seria a nova capital mineira.
Ao conseguir me livrar daquele velório e alcançar a rua, observei de imediato que, quase em frente, um dos casarões históricos do local estava em processo de demolição. Não resisti. Entrei pelos escombros sem medir os perigos – menino não tem juízo mesmo, né? – e comecei a explorar os espaços. Muita coisa antiga. Até mesmo utensílios e móveis carcomidos pelo tempo permaneciam no lugar. Foi quando me deparei com uma parede semidemolida onde um grosso prego sustentava um calendário. Era lindo. Parecia novo. Estava completo. Suspenso por um cordão dourado que imitava ouro, cada folha com cada mês do ano era ilustrada por paisagens rupestres desenhadas a nanquim e colorizada em alguma gráfica.
Não pensei duas vezes. Retirei o calendário da parede e, depois de apreciá-lo detalhadamente, retornei ao velório de Titio Geninho. O intuito era mostrar orgulhoso para a minha mãe o resultado da minha pequena caça ao tesouro. Antes que ela perguntasse por onde eu andara, fui logo mostrando o meu achado. Para meu espanto, minha mãe, que até então tinha apenas choramingado pela morte do tio, caiu em prantos, que até chamou a atenção de todos. Fiquei assustado e achando que tinha feito a pior arte da minha vida... Não entendia aquele choro galopante de Dona Elza.
Com medo, achando que havia feito algo de muito errado, contei como havia encontrado o calendário e perguntei se deveria devolver ao casarão semidestruído. Foi quando minha mãe disse: “Não, meu filho. Leve com você e guarde. Este calendário é de um ano muito especial para mim. É o ano em que seu avô, meu pai, morreu”. Cumpri as ordens da minha mãe. Levei para casa e ele está comigo até hoje. O calendário é de 1947, o ano em que meu Vô Totó (Antônio Olintho de Rezende) cometeu suicídio – mas isso já é outra história.
Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 8 de abril de 2025) – Foto: Pixabay – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com
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