“Laços de sangue”: formação de chapas na Paraíba deixa disputa eleitoral em família

Publicado em: 14/10/2020 às 11:30
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As eleições paraibanas de 2020 estão registrando um fenômeno cada vez mais comum nas campanhas políticas: a formação das chapas familiares. Em pelo menos quatro cidades, as candidaturas ao cargo de prefeito contam com a presença de parentes e expõem o peso de como os sobrenomes ou os ideais de grupos são utilizados na disputa eleitoral.

No Congo, o candidato à prefeitura Romualdo Quirino tem candidata de vice em sua chapa a própria esposa, Flávia Quirino. Ambos são do PSB que não se coligou com outra legenda nessa disputa. Mesma situação encontrada na cidade de Gurjão, onde o PTC lançou os irmãos Aildo Brito e Alberto Brito (Beto Eletricista) como candidatos a prefeito e a vice, respectivamente.

“Não só na Paraíba, como em vários estados do Nordeste, o peso das famílias e dos ‘laços de sangue’ sempre foi importante para a composição das oligarquias políticas municipais e estaduais. Foi assim, inclusive, mesclando o público com o privado que o fenômeno do patrimonialismo surge no Brasil”, analisa o cientista político Augusto Teixeira.

No Congo, ainda há integrantes da mesma família com candidaturas para o cargo de vereador. E mesmo nos casos em que há coligações, além da mesma família, o partido principal foi quem realizou as indicações. É o caso, por exemplo, da cidade de Areia, onde a candidata Sílvia César Farias da Cunha Lima, do PSC, colocou a sogra, Marília do Socorro Perazzo Melo – também do PSC – como vice na coligação ‘Respeito, Paz e Liberdade’ (PSC, PSL e Solidariedade). Sílvia é esposa do ex-prefeito Doutor Elsinho Cunha Lima e sua vice (e sogra) é a atual vice-prefeita da cidade, concorrendo para permanecer no cargo.

Em Monteiro a chapa familiar envolve mãe e filha (na foto). A deputada federal Edna Henrique é candidata a vice-prefeita na chapa encabeçada por sua filha, a médica Micheila Henrique. Ambas são do PSDB que lidera a coligação ‘Monteiro Unida Por Dias Melhores’ (Republicanos, PP, PDT, PSL, Patriota, Solidariedade, Pros, PROS, PSD, PSC e PSDB). O pai de Micheila e marido de Edna é o deputado estadual João Henrique (PSDB).

O Ministério Público Eleitoral (MPE) preferiu não comentar a situação encontrada nos municípios paraibanos, que é avaliada como uma fusão entre o público e o privado por Augusto Teixeira. “A política profissional é um empreendimento familiar. Com isso, o bem público torna-se objeto de potencial captura por interesses privados. O patrimonialismo, a mistura entre público e privado, surge como risco mais direto”, afirma o cientista político.

Legislação poderia ser mudada

Uma alternativa para modificar essa situação é a alteração nas leis vigentes. Uma das brechas jurídicas para a formação das chapas familiares está numa decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de 2009, quando o órgão respondeu uma consulta feita pelo então deputado federal Uldurico Alves Pinto (PMN-BA). O parlamentar questionava se cônjuges que não exercem o cargo de prefeito de algum município, poderiam se candidatar, respectivamente, a prefeito e a vice-prefeito.

Destacando o parágrafo 7º do artigo 14 da Constituição Federal – que estabelece que somente são inelegíveis, no território da jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, ou de quem os haja substituído nos seis meses anteriores à eleição, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição – os ministros liberaram a candidatura.

Para o professor Augusto Teixeira, que leciona na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), apesar de permitido pela legislação, o gesto não é um bom indicativo nas nações democráticas. “Assumir um cargo público, especialmente eletivo, envolve a responsabilidade de agir como gesto público, no qual o interesse republicano deveria constar como a prioridade. Ao termos a vinculação e proximidade entre parentes em diversas chapas, a percepção do público se mistura com a do privado, do ambiente familiar e da comunidade de interesses mais ampla”, avalia.

O tema chegou a ser analisado na Câmara Federal, em 2011, a partir de um projeto de lei de autoria do então deputado José Carlos Araújo (PL-BA). O texto sugeria a proibição do cônjuge ou parente do candidato a presidente da República, governador, prefeito ou senador de ser inscrito, na mesma chapa, como vice ou suplente. Pela proposta, estariam proibidos de participar das chapas os parentes consanguíneos ou afins até o segundo grau ou por adoção. A matéria acabou arquivada pela mesa diretora no ano passado.

“A prática, apesar de legal, não é o ideal para o amadurecimento da democracia e a representação diversa da sociedade paraibana. Famílias possuem interesses próprios, o que é legítimo. Contudo, o interesse público deve ser norteado e defendido por uma lógica que transcenda o vínculo familiar”, acrescenta o cientista político.

Democracia em crise

Outra avaliação feita sobre o cenário político do país mostra que democracia no Brasil contemporâneo está em crise. “Não apenas no Brasil, como também em países desenvolvidos como nos Estados Unidos. O questionamento dos fundamentos da democracia, do sistema e regras eleitorais e de votação, a crise do sistema partidário e da representação política, todos são traços que levam à chamada ‘antipolítica’”, alerta o professor Teixeira.

Augusto destaca que, se de um lado as pessoas buscam a alternativa fora da política tradicional, incorporada por candidatos vistos como de fora do jogo, por outro, grupos tradicionais e familiares da política tendem a buscar a sua sobrevivência como forma de manter a atuação pública como empreendimento familiar. “Nesse sentido, observa-se um retrocesso na perspectiva de que a representação de grupos diversos na sociedade, ausentes dos núcleos das famílias tradicionais, não se veem representados à altura”, acrescenta.

Outro ponto destacado pelo cientista político é a relação íntima entre elites econômicas e políticas, quando não a sua convergência, que podem criar barreiras de entrada para novos oponentes, deixando grupos relevantes sem representação ou chance de exercer o governo no Executivo. “No campo simbólico, o ‘familismo’ é uma marca do atraso político, de uma elite política ainda não amadurecida, que não comporta em sua estrutura a complexidade de uma sociedade urbana e complexa”, reforça.

Augusto acrescenta que o fenômeno, “familismo” e “patrimonialismo”, anteriormente restrito a partes do país, ligado à tradição política do chamado “Brasil profundo”, agora ganhou a mais alta esfera do Executivo nacional. “Desta forma, esses dois traços, ao confundir público e privado – nos limites entre a legalidade e a moralidade – retomam espaço e aceitação da política normal. Como resultado, todos perdemos, em especial a nossa democracia em formação”, lamenta.



Fonte: Espaço PB com jornal A União (Thaís Cirino) – Foto: Paraíba Radioblog – contato@espacopb.com.br

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