Artigo: Wandré, Belinha, Fabíola e uma causa – Jorge Rezende

Publicado em: 21/01/2025 às 17:40
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A luz do dia dava sinais de que iria se apagar em breve no final da tarde da última quarta-feira, 15 de janeiro. O “cheiro” da noite pairava no ar da Comunidade de Mulungu, no Bairro do Varadouro, um dos mais antigos e tradicionais logradouros da capital paraibana. Um local que de dia já não passa tanta segurança para aqueles que ali residem. Imaginem a situação ao anoitecer naquele lugar fincado nas adjacências da chamada “cracolândia pessoense”. A violência sempre impera e crimes de todas as espécies tomam conta da vida dos viventes da comunidade.

Pessoa com deficiência visual, Wandré estava em pé na frente da porta de sua pequena casa alugada. Sentados na calçada estariam três jovens, quando um carro passa pelo local e um dos ocupantes começa os disparos de revólver. Os jovens correm. Wandré, sem enxergar, é atingido por vários tiros, tenta entrar em casa, mas é executado pelo atirador. Aos 57 anos, morria Seu Wandré, figura bastante conhecida e querida na localidade e por muita gente que o via quase que diariamente na entrada do Tambiá Shopping. Foi morto brutalmente por engano. Os tiros, na verdade, teriam como alvo os jovens que saíram ilesos do atentado.

A única testemunha da cena dantesca foi Belinha, uma cachorra sem raça definida (também denominada de vira-latas ou caramelo). Ela não arredou pé (melhor: as patas) do local. Ficou ao lado do corpo inerte do seu pai-tutor. O amor entre Wandré e Belinha era comovente. Viviam como pai e filha. Ela era a companheira fiel de Seu Wandré, que a tratava muito bem. Belinha era a protetora e guia daquele homem cego, que ganhava a vida tocando uma flauta-doce em troca de uns trocados pelas ruas de João Pessoa, comumente em frente ao Tambiá Shopping.

Wandré Bernardino Carneiro, que criara Belinha desde filhotinha, era um homem solitário. Vivia, por vontade própria, afastado da família – que nunca o abandonou. Antes dessa opção de vida, era um homem comum. Teve um passado vivido no Bairro Jardim Planalto, foi “casado”, teve duas filhas e exerceu atividades como segurança e de instrutor de banda musical de uma escola pública no bairro onde cresceu com seus pais, irmãos e irmãs. Seu destino mudou quando voltava do trabalho com uma amiga e os dois foram alvos de um assalto. Wandré foi baleado na cabeça, cuja bala alojada lhe tirou a memória e o “juízo”, contribuindo para levá-lo à cegueira. Se negava a conviver com a família, se entregou à bebida e à convivência com pessoas do mundo das drogas. Seu único bem nos últimos anos de vida era a convivência com a companheira Belinha, sua filha de quatro patas. Um amor incondicional.

No ano passado, Belinha foi diagnosticada com câncer e doença do carrapato. Foi aí que surgiu a protetora Fabíola Rezende na vida dos dois. Fundadora da ong Ajude Anjos de Rua, a ativista da causa animal atendeu ao socorro de Wandré, acolheu Belinha e a levou para tratamento veterinário. Cinco meses depois, Belinha estava curada e voltava aos braços do pai-tutor. A partir de então, Fabíola passou a amparar a vida dos dois, garantindo cuidados (ração, remédios, vacinações, shampoos etc.) para Belinha e atenção para seu tutor. Wandré chamava Fabíola de madrinha e de “minha mãe”.

Sem dar publicidade às suas ações, Fabíola foi o que ela sempre foi: solidária e dedicada aos que mais precisam. Passou também a cuidar de Seu Wandré, garantindo-lhe remédios, alimentação e patrocinando o aluguel da casinha na Comunidade de Mulungu, de onde o tocador de flauta-doce nunca quis sair. Fabíola, com sua índole de amar animais e pessoas, sempre entra em ação movida pela compaixão e com o sentimento de cumprir sua missão – e sou testemunha dessa ternura de Fabíola há 24 anos, o tempo de uma vida juntos.

Com o trágico assassinato de Wandré, Fabíola providenciou um novo lar para Belinha, que hoje está com uma tutora, dando-lhe amor, atenção e cuidados necessários. A estúpida morte de Wandré, que comoveu boa parte da sociedade pessoense, com certeza não apagou o amor de Belinha por seu antigo tutor. E, mesmo abalada com essa tragédia, Fabíola permanece sem esmorecer em favor da causa animal. A missão continua!



Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 21 de janeiro de 2025) – Foto: Reprodução – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com

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