Artigo: O gato Rubi – Jorge Rezende

Publicado em: 03/10/2024 às 20:20
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Eu deveria ter entre quatro e cinco anos de idade. Morávamos em uma casa simples, com um pequeno alpendre com degraus que davam acesso à porta da sala. Duas janelas em madeira permitiam uma visão geral aos dois lados da ladeira. Nosso lar se localizava em frente a uma outra casa, mais simples ainda, onde havia sido a minha primeira moradia neste planeta Terra. Isso significa que esta casa de alpendre (com cerâmicas vermelhas ou cimento pintado) e com duas janelas altas voltadas para a calçada foi onde vivi parte da minha primeira infância.

Como sei desses detalhes? – e de outros aspectos dessa morada, inclusive com um quintal razoável, onde havia uma goiabeira em que a nossa macaca Chica (um macaco-prego trazido por meu pai lá da fronteira, no estado de Roraima) vivia presa a uma longa corrente (mas isso é outra história). Repito: como sei de tudo isso? Podem acreditar: estão na minha memória afetiva. Nos “arquivos” escondidos no meu passado de criança. Ninguém nunca me contou nada sobre esses pormenores. Sei de tudo isso e de muito mais.

Sempre quando conto reminiscências de coisas ocorridas, vistas e ouvidas da minha tenra infância, quase todos duvidam. Riem e dizem que sou um exagerado (educadamente, pra não dizerem mentiroso). A maioria das pessoas tem poucas lembranças de sua primeira infância. Não sei o porquê, mas eu as tenho. E muitas. Em alguns casos, em detalhes. É mais fácil lembrar de fatos e imagens dos meus poucos meses de vida até aos meus sete anos do que algo que aconteceu na semana passada... É verdade. Isso às vezes me assustava. Mas hoje me convenci de ser um privilegiado em ter essas recordações tão remotas. E põe remotas nisso!

Quando já na minha adolescência e na fase de “adulto-novo”, cheguei a duvidar dessas memórias tão distantes. Passei a pensar que eram frutos da minha imaginação ou que pessoas da família haviam me contado fatos e que depois achei tê-los vivenciado. Comecei a contar essas passagens afetivas (coisas boas e ruins) para a minha mãe Elza e para a minha vó Dica (Josephina Fonseca Rezende). E elas ficavam impressionadas, sempre alegando: “Como você sabe disso?”. E eu partia para mais detalhes. E elas se convenciam de que eu me lembrava, sim, desse passado bem antigo. E eu também me convenci de que não “estava louco”. Sem explicação, fui agraciado por essa característica. O que hoje me deixa satisfeito – e não com sentimento de “mentiroso alucinado”.

Voltando à casa do alpendre vermelho e de janelas altas que abrigava a macaca Chica, ocorreu um fato, que acredito ter acontecido entre os anos de 1970 e 1971. Foi o meu primeiro contato com a morte. E que até hoje mexe com as minhas emoções. Me traz angústias. Dá um nó na garganta, sensação de querer chorar e até um vazio existencial. Mas logo tudo passa e volto a ficar feliz por lembrar dessas coisas tão detalhadamente.

Era um início de noite. Havia muita gente lá em casa, todos conversando em voz alta, contando fatos do quotidiano, entrecortados com coisas engraçadas, seguidas por uma verdadeira sinfonia de gargalhadas. Aquele clima me deixava feliz entre os adultos. Me sentia seguro e “me achando gente” em meio aos mais velhos. Havia um bocado de pessoas, mas me lembro nitidamente do meu pai, da minha vó Dica, da tia Zezé, do tio Wilson, do tio Reis e da minha mãe Elza, sentada em uma cadeira na copa da casa – quase na cozinha – e eu ao lado dela.

Não sei se os adultos escutaram ou perceberam, mas ouvi quando um carro passou em certa velocidade acelerada em frente à nossa casa. Também não sei se subia ou descia a ladeira de paralelepípedos. Segundos depois, nosso gato, de nome Rubi, entrou feito uma bala pela porta da casa e foi se deitar aos pés de minha mãe – deitar ou cair, não consigo ter essa certeza até hoje.

Rubi, um gato bastante grande, de pelos em branco e preto e com seus olhos avermelhados – aí a origem do nome dele, eu deduzo –, apresentava um filete de sangue escorrendo pelo canto da boca. Seus olhos rubros me fixaram e ele deu seu último suspiro. Raciocinei que aquilo tudo era fruto daquele carro que acabara de passar por nossa casa. Rubi estava morto. O que antes eram gargalhadas, o ambiente ficou tomado por tristeza. Me lembro do choro incontrolável de minha mãe e de uma das minhas irmãs (aí não me lembro de qual delas, mas acho que era Rosângela, que até hoje chamamos de Zanja).

Rubi morreu olhando nos meus olhos. Isso nunca saiu da minha cabeça. Foi o meu primeiro contato com a morte. Até então, eu não tinha ideia do que era morrer. Não chorei. Porém, experimentei pela primeira vez na vida uma tristeza profunda. Mal sabia eu que estava apenas no princípio de uma jornada de vida e que muitas perdas viriam, de bichos, de gente e de sonhos.



Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 1º de outubro de 2024) – Foto: Pixabay – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com

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