
Era uma família comum de assalariados. O pai, Seu Zé, um operário da construção civil. A mãe, Dona Marina, uma dona-de-casa com a saúde um tanto abalada pela pressão alta e diabetes. Tinham quatro filhos: duas moças mais velhas, Maria e Francisca, que já trabalhavam no comércio da cidade; e dois adolescentes, Camilo e Mauro. Dividiam uma vida pacata numa pequena casa alugada de cinco cômodos no final do corredor que margeava a casa principal do terreno.
A família vivia um drama doméstico tão comum naquela época e que se perpetua nos dias atuais. Seu Zé era um homem bom e trabalhador, porém escravo do álcool. Quase sempre chegava em casa sob o efeito da bebida. Tornava-se violento. Oprimia e maltratava esposa e filhos. Muitas vezes surrando e colocando-os para fora de casa. Por diversas vezes, Dona Marina com os filhos ficavam na rua até de madrugada, esperando o embriagado Seu Zé cair no sono para poderem entrar no lar conturbado.
Dona Marina era amiga de minha mãe, Dona Elza. Penalizada com a situação, minha mãe começou a abrir as portas da nossa casa para acolher essa família naqueles dias em que Seu Zé chegava bêbado. Na eminência de serem agredidos, corriam para a nossa casa, distante a uns quatro quarteirões, onde dormiam e só voltavam para casa deles na manhã do dia seguinte. Dona Elza sempre dava um jeito. Acomodava a todos, “espalhando” Dona Marina, Maria, Francisca, Camilo e Mauro por nossa casa.
Quando isso acontecia, eu e meu irmão Totonho dividíamos com Camilo e Mauro o mesmo sofá da sala, um tradicional móvel dos anos de 1970 que, ao ser “aberto”, transformava-se numa cama. Era ali que os quatro dormiam, sem antes ficarmos até altas horas tagarelando sobre os acontecimentos do dia e contando histórias de terror e de aventuras. E foi numa dessas noites que ouvimos as batidas de tambores e cânticos, quebrando o silêncio característico do nosso tranquilo bairro. A música e os cantos vinham de uma encruzilhada não muito distante de nossa casa. Deduzimos tratar-se de algum despacho espiritual protagonizado por gente de terreiro.
No surgir dos primeiros raios de sol, pulamos do sofá-cama e corremos para ir de encontro ao local dos tambores e atabaques ouvidos na madrugada. Três esquinas depois, quase às margens do Rio Verde, constatamos o que imaginávamos: era mesmo um despacho, o que a maioria das pessoas, pejorativamente, por preconceito e ignorância, aponta como sendo uma macumba, um “trabalho do mal” para prejudicar alguém. Pelos aparatos, percebemos que o despacho era uma oferenda à Pombagira.
No meio da encruzilhada, sobre uma toalha de seda vermelha havia de tudo para agradar a Pombagira: farofa com galinha numa travessa “chic”, taça de cristal, garrafa de champanhe, maços de cigarro Hollywood, charutos, velas vermelhas e pretas, rosas também vermelhas, batons, perfumes, bijuterias... Por orientação de minha mãe, eu e Totonho tínhamos certas informações e, por respeito, nunca mexíamos nos despachos. Diferente de Camilo que, mesmo diante dos nossos apelos, não se fez de rogado: passou a chutar o despacho, quebrando e espalhando tudo... Só deu para salvar a taça de cristal, que meu irmão levou com ele e colocamos no armário principal da copa de nossa casa. E não contamos a ninguém.
Pombagira é uma entidade espiritual afro-brasileira, presente no Candomblé e na Umbanda. Ela é uma mulher sensual, independente e dominadora, que simboliza a libertação da submissão imposta às mulheres. É uma entidade de justiça e equilíbrio, que atua para corrigir situações de abuso de poder ou traição. “É a senhora dos interiores, ou seja, trabalha com aquilo que está oculto em nosso coração; uma mensageira dos Orixás, cumprindo sua tarefa de evoluir através da ajuda aos outros”.
Na noite daquele mesmo dia, dois fatos inexplicáveis: ao mesmo tempo que chegava a notícia de que uma das pernas de Camilo começara a inchar sem nenhuma motivação, a taça da Pombagira praticamente “explodiu” no armário de minha casa. Com medo, contamos tudo a minha mãe, que consultou Seu Benedito, um pai-de-santo da cidade. Dona Elza comprou uma nova taça e obrigou a nós quatro, à meia-noite, colocarmos a taça na mesma encruzilhada, com Camilo pedindo desculpas à Pombagira. No dia seguinte, tudo voltou ao normal e, da mesma forma que começou, o inchaço na perna de Camilo desapareceu. Não sei explicar, só sei que foi assim.
Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 25 de fevereiro de 2025) – Foto: Reprodução – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com
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