Artigo: Sobrevida das gavetas – Jorge Rezende

Publicado em: 24/12/2024 às 08:30
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Quando vai chegando o mês de dezembro, fica no ar – e na sensação da maioria dos mortais – aquele clima de fim de um ciclo e início da proximidade de uma nova jornada. As vontades de mudanças e de coisas novas se intensificam no período das festas de fim de ano – Natal e réveillon. Momento de cultivar sonhos, desejos e esperanças; programar a fase vindoura, fazendo planos e esboços de projetos, além de traçar boas perspectivas.

No campo material, boa parte das pessoas valoriza a melhoria do lugar onde mora. Dentro das possibilidades financeiras de cada um, de cada família, quando podem elas materializam seus desejos de mudanças pintando a casa, fazendo uma reforma ou até se transferindo para outra residência. Isso sem falar na aquisição de uma roupa nova, um outro corte de cabelo... simplesmente caprichando no visual.

Um sentimento de mudança mais recorrente é a aquisição de coisas novas para o lar. É comum, no final do ano, as pessoas procurarem adquirir móveis e eletrodomésticos novos. Descartando aquela cômoda antiga, aquele guarda-roupas caindo aos pedaços, o fogão que “já perdeu o gás” faz tempo, a geladeira ultrapassada, o colchão e a cama que já passaram do tempo após tantas dormidas e insônias... a renovação é a ordem do dia.

Aqui em João Pessoa, desde o início do mês de novembro – e intensificado agora em dezembro –, é comum ver pelas calçadas o amontoado de móveis velhos descartados. Isso acontece nos quatro cantos da cidade. Moradores de bairros ricos (ou metidos a ricos) e pobres, da periferia aos locais considerados mais nobres, não pensam duas vezes e suas “tranqueiras” vão lá para as calçadas: “os restos mortais” daquela mesa, cadeira, armário... à espera do caminhão do lixo.

Neste período de desfazimento dos móveis, uma coisa sempre me chamou e continua chamando a atenção. Quando o descarte é de um guarda-roupas, de um armário de cozinha ou de qualquer outro móvel que possuía gavetas, a cena que me intriga é sempre a mesma. A gente vê aquele amontoado de restos e frangalhos do que um dia foi um móvel “querido”, praticamente sem nenhuma serventia ou possível reaproveitamento por parte de quem não tem dinheiro para um objeto novo, ao lado de suas gavetas, muitas vezes totalmente intactas, com caras de coisa nova, parecendo que nunca fizeram parte do “falecido” guarda-roupas, camiseiro ou armário... as gavetas no lixo destoam dos objetos aos quais que, até recentemente, elas se encaixavam.

Há anos tenho observado isso. Antes eu achava que eram só coincidências. Todavia, a cena recorrente me dá hoje a certeza: as gavetas têm uma sobrevida. Não sei o porquê, mas elas estão lá, vivinhas da silva, nem parecendo que estavam até bem pouco tempo no corpo do seu móvel-hospedeiro. Longe de serem parasitas, elas, que um dia foram úteis para guardar camisetas, meias cuecas e calcinhas, que serviram para acondicionar talheres, panos de prato e utensílios de cozinha, ou para dar segurança a documentos, joias, maquiagens, elas estão lá, dando provas de vida após a morte do móvel que um dia as carregava nas entranhas.

Nesses anos todos, minha imaginação correu solta. Cheguei a pensar a me transformar em um catador de gavetas abandonadas, levá-las para casa e transformá-las em casinhas para cachorros ou gatos, em um canteiro improvisado para cultivar flores, temperos ou hortaliças, ninhos de galinha e até em simples guarda-trecos. Mas nunca coloquei as ideias em prática e até acredito que deva existir muita gente que faça algumas dessas coisas, dando uma oportunidade de vida nova às gavetas descartadas. Mas eu nunca saí do campo das ideias.

Hoje prefiro fazer uma analogia com esses objetos. O que já me satisfaz e, de certa maneira, me ajuda a exorcizar esses pensamentos meio malucos que a gente cultiva na cabeça, guarda só pra gente, sem saber pra que servem. Prefiro imaginar que um guarda-roupas, por exemplo, equivaleria ao corpo de um móvel encarnado, que um dia iria morrer e ser sepultado em uma calçada qualquer. Já suas gavetas são a alma. O espírito que esteve habitando o interior daquele móvel. E agora, nas calçadas, junto aos restos do “seu corpo”, estão vivas, à espera de encontrar a luz em sua sobrevida. Eu acredito em vida pós-morte. Nossas “gavetas” vão sobreviver, sim, aos nossos corpos destinados a ficarem carcomidos com o tempo.



Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 24 de dezembro de 2024) – Foto: Pixabay – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com

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