
Nasci e cresci numa família bastante eclética no que diz respeito a religião e crenças. Havia (e ainda há) de tudo. Muitos católicos e espíritas (kardecistas ou umbandistas). Tinham os protestantes também e, mais tarde, apareceram alguns neopentecostais. Ateus não poderiam faltar e eram frequentes. Isso sem falar nos “admiradores” do Judaísmo, do Islamismo, do Budismo e até da Seicho-No-Ie, uma “nova” religião japonesa que reúne tradições xintoístas, cristãs e budistas. Podem acreditar. Essa “miscelânea de fé” sempre existiu na minha família, sem quase nenhuma “guerra santa”.
Mais especificamente na minha casa, meu pai, seu Jorge Severino, era extremamente católico. Devoto de Nossa Senhora da Conceição e admirador de São João Batista, frequentava missas, mas preferia acompanhar pela televisão os pronunciamentos do papa do momento e assistir ao ‘Santa Missa no Seu Lar’, nas manhãs do domingo da TV Globo. Não perdia uma Missa do Galo no final do ano, transmitida diretamente da Cidade do Vaticano. Nos obrigou, quando pequenos – eu e meus três irmãos – a aprender o Pai Nosso e a Ave Maria, mas nunca exigiu que virássemos católicos ou frequentadores de igreja.
Minha mãe, dona Elza Rezende, nasceu numa família católica, mas, desde que me entendo por gente, ela abraçou por alguns longos anos a Umbanda e depois ficou mais focada no Espiritismo Kardecista. Também nunca nos obrigou a nada, mas gostava que a gente lesse os livros espíritas que ela acumulava em casa e a acompanhasse às sessões espíritas e nas atividades de caridade que ela sempre se envolvia na Cruzada dos Militares Espíritas, lá em Três Corações, comandada até então por Capitão Vendramini.
Há muito tempo me considero espírita, mas alguns trejeitos católicos permanecem comigo. Um deles é fazer o sinal da cruz. Fui pesquisar e constatei que a prática de fazer o sinal da cruz vem desde os primórdios das igrejas cristãs. Hoje, ela é praticada tanto na Igreja Romana quanto na Ortodoxa. “O início de sua prática remonta a um padre chamado Tertuliano, que viveu no terceiro século. Nasceu por volta de 160 d.C. e morreu em 220 d.C. Em um de seus escritos, chamado ‘De Corona Militis’, encontra-se claramente essa prática descrita por ele (...)”.
Conforme a Igreja Católica Apostólica Romana, o sinal da cruz – todos sabem, mas é bom lembrar – se inicia na testa, desce para o coração, depois para o ombro esquerdo e então ombro direito, com a mão direita, enquanto se pronuncia: “Em nome o pai (na testa), do filho (no peito), do espírito (lado esquerdo), santo (lado direito)”. No final se diz amém.
Continuo até hoje fazendo o sinal da cruz. Porém, esse gesto simples e de demonstração de fé, de crença ou de pedido de proteção já me perturbou por um período da minha vida. Isso aconteceu entre o final da década de 1970 e início dos anos de 1980. Não cheguei a deixar de fazer o sinal da cruz, mas o fazia disfarçadamente, para que ninguém percebesse – pelo menos acreditava nisso – que eu estaria me benzendo ou era um fervoroso devoto católico.
E eu explico... Numa rua perpendicular à esquina de minha casa, certa vez morreu dona Maria Caetano. Ela residia numa casa de muros bem baixos e que deixavam a porta da sala bem visível para quem passasse pela rua. Quase sempre a gente avistava dona Maria olhando o movimento da rua por meio daquela janelinha da porta de madeira. Aquele rosto moreno, sem muito sorriso, vigiava a vida dos vizinhos e transeuntes. Com a morte dela, passei a fazer o sinal da cruz toda vez que passava em frente da casa. Primeiro, em sinal de respeito e pelo espírito dela; segundo, e mais contundente, pedindo proteção para que ela nunca aparecesse, depois de morta, naquela janelinha. Apesar de espírita, tenho medo, sim, de aparições.
Passados alguns meses, morreu o marido dela: seu Caetano. Então, ao passar em frente à mesma casa, fosse dia, tarde, noite ou madrugada, o cacoete era fazer o sinal da cruz duas vezes. Transcorrido mais algum tempo, morreu o menino Dagô, que residia em uma casa quase vizinha à de dona Maria Caetano e que já foi tema de uma crônica nesta coluna. A partir daí, a agonia era maior ainda: eram três sinais da cruz. E fazia disfarçadamente, principalmente quando haviam outras pessoas próximas a mim. Virou um tormento, quase que um TOC: Transtorno Obsessivo-Compulsivo, um distúrbio mental da ansiedade que se caracteriza por pensamentos obsessivos ou compulsões.
Chegar em casa por aquela rua era um verdadeiro sofrimento. Quase uma promessa escondida para “pedir passagem” às pessoas desencarnadas por ali. Haja sinal da cruz... E para piorar a situação, passado mais um tempo, uma quarta pessoa que residia na mesma rua morreu. Entrei em desespero mental e, antes que ficasse maníaco de vez ou começassem a me apontar como o “louco do sinal da cruz”, tomei uma decisão drástica: até me mudar de vez da Rua Sagrada Família e ir morar em outro bairro, nunca mais passei pela rua dos sinais da cruz. Dava uma volta pelo quarteirão, demorava mais para chegar em casa, mas me livrei daquele TOC de fé e medo.
Em tempo: “Fazer o sinal da cruz é uma forma de professar a fé na Trindade Pai, Filho e Espírito Santo; iniciar uma oração; se colocar sob a proteção do altíssimo, se defender das tentações, pois a cruz é um escudo contra os demônios, pois colocamos em nós a marca de Cristo e, logo, demonstramos pertencimento a ele”, segundo minhas pesquisas.
Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 31 de dezembro de 2024) – Foto: Pixabay – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com
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