
Toda cidade que se preza tem suas figuras populares. Aquelas pessoas que, de algum modo, são interessantes, chamam a atenção dos habitantes locais e ganham uma dimensão especial. Essas personagens são mais comuns em cidades pequenas ou de porte médio. São raras em urbes maiores. Algumas dessas figuras acabam entrando para o folclore local e até mesmo para a história oficial da sua região.
Na minha infância e juventude, lá na minha cidade de Três Corações, tive oportunidade de conhecer e, de certa forma, conviver com algumas dessas pessoas. Me lembro de Paco, que andava maltrapilho pelas ruas, fazendo caretas e mímicas que assustavam, principalmente crianças. Havia também Tico-Tico-Bambão (nome resultante de uma frase que ele sempre repetia a todos), que igualmente andava maltrapilho, com um agravante: um forte cheiro de urina.
Existia outra figura popular, cujo nome não me lembro, andava descalço e com roupas bastante surradas. Era um negro alto e forte, que mal abria a boca pra falar, mas sempre mastigando pedaços de carne crua que ele pedia pelos açougues da cidade. Era uma imagem intrigante. Também havia a Lagartixa, uma mulher em torno dos seus quarenta e poucos anos, bem magra, de óculos marcantes, sempre carregando uma sacola e uma sombrinha, fechada ou não, fazia chuva ou sol.
Lagartixa era estressada. Odiava ser chamada por esse nome e era alvo constante de chacotas e assédios. Bastava alguém gritar na rua: “Lagartixa!”, e ela saía atrás da pessoa gritando palavrões e com a sombrinha na mão tentando acertar a cabeça do “caluniador sem coração e empatia”.
Três Corações abrigava até mesmo uma família inteira de figuras populares. O pai era o Amolador de Facas (denominação ganha por sua atividade de ganha-pão). Praticamente sem dizer uma palavra, baixinho, gordinho e sempre sorridente, prestava serviço de porta em porta, afiando facas, facões, tesouras, alicates de unha... Era casado com Maria Codorna, que andava a cidade inteira, tagarelando, conversando de tudo, sem vírgula ou ponto, com quem encontrava pela frente. O filho mais velho, falante como a mãe, era Churrasquinho. Voz nasalizada (“fanhosa”), resultado de uma fissura labiopalatina. Churrasquinho inventava histórias surreais que os mais desavisados acreditavam.
Acredito que todos eles já morreram. Paco, Tico-Tico-Bambão, o comedor de carne crua, Lagartixa e a família do Amolador de Facas não devem estar mais entre os encarnados de Três Corações. Todavia, ainda há uma outra figura popular que marcou a minha juventude e que permanece viva, como me informou recentemente minha irmã mais velha, Maria José. Essa personagem é Zezinho Guerreiro, que morava no meu bairro de infância, o Santa Teresa.
Zezinho, um negro não muito alto, bastante musculoso – forte por natureza, sem a necessidade das academias como existem hoje – e que tinha como características marcantes a sua voz extremamente grave e arrastada, além de um bigode aportuguesado. Aposentado como servidor público municipal, hoje é septuagenário ou até mesmo já deve estar na casa dos oitenta anos.
Numa época em que não havia unidade do Corpo de Bombeiros e nem uma defesa civil organizada na minha cidade, Zezinho Guerreiro era o “herói” dos tricordianos. Exímio nadador, caçador, mateiro, escalador, segurança..., sempre estava disposto a ajudar a população nos eventos de catástrofe (principalmente enchentes), salvando muita gente de afogamentos, por exemplo. Um tanto exagerado em suas histórias, ele sempre se gabava de ter resgatado centenas de corpos de vítimas de afogamento ao longo do trecho do Rio Verde que corta a minha cidade. Ele sempre garantia: “Sou o maior resgatador de corpos do Sul de Minas”.
Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 10 de dezembro de 2024) – Foto: Pixabay – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com
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