Artigo: Mamãe Tatá – Jorge Rezende

Em meados de fevereiro de 2022, publiquei no caderno Almanaque, do jornal A União, o artigo ‘Meu primo André Rezende e nosso Exu de cada dia’. A motivação para o texto à época foi a vitória da Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, quando foi campeã pela primeira vez do Carnaval do Rio de Janeiro, levando para a avenida a figura de Exu como tema de seu enredo. O artigo também era uma homenagem (lembrança) de um primo meu. Passado esse tempo, vou relembrar aqui boa parte do conteúdo que registrei naquele início de ano.

Vivi parte da infância e pré-adolescência brincando, correndo, saltitando, inventando histórias de aventura e sonhando com um mundo perfeito em meio a um terreiro de Umbanda, que era comandado por uma prima de minha mãe. Era o Terreiro de Mamãe Tatá. O meu “reino encantado” dessa fase da vida de meninice. Meu parceiro de aventuras naquele pedacinho de terra, que nos transportava ao mundo de Aruanda, era o meu primo André Rezende. Na verdade, não era meu primo direto. Éramos filhos de duas primas, dona Elza, minha mãe, e dona Sílvia, mãe de André.

André era um menino calmo, estudioso, de fala mansa, de espírito solidário, voltado à caridade e de sempre servir ao próximo sem nada esperar em troca. Mais velho do que eu uns dois ou três anos, era extremamente religioso. Pela tenra idade, era exímio conhecedor das religiões. Vivia grudado a uma Bíblia e desenrolava bem dentro do Catolicismo. Mas era nos assuntos ligados à Umbanda, ao Candomblé e à Quimbanda que André se tornava um “verdadeiro doutor”. O que não era de se espantar, pois nasceu e cresceu numa família de brancos, descendentes dos espanhóis da Andaluzia, mas totalmente voltada às coisas, à cultura e às religiões e manifestações de origens africanas.

Sua mãe – que eu chamava de tia e pedia a bênção –, era médium e incorporava várias entidades espirituais, mas tinha como guia a preta-velha Mamãe Tatá, que dava nome ao seu terreiro. O irmão mais velho, Beto, era o responsável pelos sons dos atabaques em noites de atividades no terreiro. Nadja, irmã igualmente mais velha que ele – que aliás era lindíssima e muito cobiçada pelos moçoilos da época –, também era médium e recebia a Cabocla Jurema (eu ficava extasiado vendo Nadja em transe – parecia que estava vendo de verdade o espírito da índia que se denominava Jurema se materializando em frente aos meus olhos “pidão” de menino conhecendo a sexualidade). E a irmã mais nova... Não me lembro o nome, era somente a irmã caçula...

Minha mãe Elza, antes de se aprofundar no mundo da doutrina espírita do Kardecismo, fazia parte da gira de dona Sílvia. Ela tinha como guia o Caboclo Flecheiro, que intrigava a minha cabeça de criança: por que minha mãe incorpora uma entidade masculina? Não poderia ser uma cabocla? Nunca obtive respostas e nem fui atrás. Todavia, nessa fase de minha vida, quem mais me instruiu, tirou meus medos, apagou os possíveis preconceitos e me explicou dentro do possível o mundo dos espíritos e da Umbanda foi o meu primo André Rezende.

“Essas aulas” do território dos povos de Aruanda ocorriam em meio às nossas brincadeiras, tanto dentro do terreiro propriamente dito, com os altares enfeitados com marafos, charutos, tigelas com pipoca e arroz, incensos e dezenas de imagens de Cristo, santos e santas católicos, orixás, pretas e pretos velhos, caboclos e caboclas, fitas coloridas... Quanto no imenso terreiro com muitas plantas que circundava a casa de Mamãe Tatá.

Era na parte externa do terreiro que ficava o que mais me impressionava. Eram várias pequenas casinhas, com porta e tudo, e cada uma guardava uma imagem de uma entidade distinta, com sua respectiva oferenda: a “sua comida”. Eram os Exus. Vários: Exu Caveira, Pombagira, Tranca Rua etc. Em princípio, eu tinha muito medo (por ignorância e preconceito). E foi André que me instruiu e me tirou do “lamaçal das antas”. Apesar de ser espírita kardecista, passei – e passo – a vida inteira tentando explicar às pessoas que Exu não corresponde ao mal. É difícil. O preconceito das pessoas e a cultura arraigada e cultivada por muitos religiosos tradicionais – ou não – contra as religiões afro-brasileiras é grande.

A grande maioria preconceituosa não sabe nada sobre a religião “dos pretos”. Exu, igualmente aos anjos da guarda, faz mais parte do nosso dia a dia... Muito mais do que a nossa “vã filosofia”. Exu é um tipo de espírito que pode estar em diversos níveis de luz e que auxilia os trabalhos espirituais, incorporando ou não nos médiuns, enquanto trabalham na lei de Umbanda. Mensageiros e guardiãs, eles também estão presentes na Jurema, no Omolocô, no Candomblé de Caboclo, entre outras religiões afro-brasileiras, ou em terreiros “traçados” de Umbanda e Candomblé. Não estão nos terreiros de Candomblés puro, de nação, como Jeje-Maí, Queto, Angola, Ijexá e Nagô. Nesses, apenas é cultuado o orixá Exu, com o qual os exus de lei não devem ser confundidos. Pela influência Católica na colonização e formação político-social do Brasil, o Exu foi logo associado ao diabo, mesmo nos primórdios da Umbanda. O Terreiro de Mamãe Tatá me livrou dessa ignorância.