Por cerca de quinze anos morei e vivi no Bairro Santa Tereza, local na minha cidade natal, Três Corações, lá no Sul de Minas, onde considero o palco dos melhores anos da minha vida. Uma infância e adolescência feliz e cheia de histórias – grande parte de coisas e fatos muito bons, que carrego até hoje nos bagageiros da alma e da lembrança. Porém, como nem tudo são flores, reminiscências ruins daquela época também ecoam nos arquivos da mente. E um desses episódios me marcou: foi quando pela primeira vez – e única até hoje – ouvi os gritos da morte.
Idealizada e construída – e nunca totalmente finalizada – pelo meu pai, a nossa casa era grande, com uma robusta laje que, enquanto moramos lá, não recebeu um telhado. Na segunda metade dos anos de 1970, não haviam tantas moradias nas imediações da nossa residência, principalmente nas áreas da parte de trás. Assim, o nosso quintal se estendia até a beira do então caudaloso e ainda despoluído Rio Verde, que circula quase que totalmente o bairro, dando ao Santa Tereza um aspecto de península em pleno sopé da Serra da Mantiqueira.
O Rio Verde separava os fundos da nossa casa do imenso Pasto do Bitu, até então um dos últimos resquícios das grandes “fazendas urbanas” da minha cidade. Um local com muitas árvores e um gramado que, ao longe, se assemelhava a campos de golfe, onde dezenas de vacas, bois, bezerros, cavalos e mulas passavam o dia pastando, antes de serem recolhidos aos currais.
Da laje da casa, tínhamos uma visão panorâmica formidável do Pasto do Bitu, emoldurado por montanhas pontilhadas por outros bairros ao longe, como a Biquinha, a Feira de Gado e o São Gerônimo. Eu e meu irmão costumávamos ficar longos períodos na laje da nossa casa, conversando, brincando, empinando papagaios e pipas e contemplando a paisagem ao nosso dispor. Mas também frequentávamos a laje à noite e madrugadas, onde até dormíamos em colchões improvisados, observando estrelas, identificando satélites e alimentando a esperança de vermos um disco voador.
E foi numa dessas altas madrugadas, no breu da noite, que nós escutamos os gritos de uma mulher pedindo socorro, em plena imensidão do Pasto do Bitu. Pela distância e escuridão, só ouvimos aqueles gritos horríveis de uma pessoa que parecia estar sendo agredida. O dia amanheceu, percebemos uma movimentação anormal de pessoas, inclusive da polícia, num ponto específico do Pasto do Bitu.
Curiosos, fomos ao local. Nas proximidades do ribeirão que corta o Bitu antes de desaguar no Rio Verde, o corpo seminu e em posição fetal de uma jovem mulher negra. Ela havia sido assassinada a facadas naquela madrugada. Era ela a dona daqueles gritos pela vida que havíamos escutado horas antes. A cena impactante me incomoda até hoje, mas ouvir os gritos da morte ficou muito mais marcante.
O Pasto do Bitu não existe mais. Hoje é um espaço fechado, arborizado e destinado à pratica de esportes coletivos e individuais, ainda com sua grande área verde para lazer. O Bitu foi transformado no Parque Dondinho, que abriga o Ginásio Poliesportivo Pelezão, onde acontecem os grandes eventos esportivos de Três Corações. No local há pistas para caminhadas, corridas e ciclismo, quadras esportivas, campos de futebol, pista de motocross e bicycross, pista de skate, academias de ginástica ao ar livre, além do lago da época do Pasto do Bitu. Pra lembrar: Dondinho, que dá nome ao parque, também foi jogador de futebol e era o pai do Atleta do Século, o tricordiano Edson Arantes do Nascimento, o Pelé.
Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 19 de novembro de 2024) – Foto: Pixabay – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com
Comentários: