
Fui festeiro. Um autêntico arroz-de-festa. Em um período considerável, lá no auge da minha adolescência, não dispensava um programa festivo, de preferência com pitadas de aventura... Algumas vezes até irresponsáveis. Ia desde acampamentos em meio a gente muito louca e shows musicais (principalmente atrações do pop-rock), passando por feiras agropecuárias e aniversários de emancipações municipais, chegando a festas de padroeiros, quermesses e festas comunitárias. O negócio era festar.
Exemplificando essa sede por peripécias, os acampamentos às vezes duravam até três ou quatro dias. Isso poderia ocorrer na zona rural (às margens de cachoeiras e rios) ou em terrenos baldios de cidades atrativas, como no município mineiro de São Tomé das Letras por exemplo. Os aperreios eram grandes. Pouco dinheiro, comida menos ainda, dependendo de carona, muito frio na maioria das vezes, roupas sem lavar e quase sempre não tendo local decente para tomar banho, peregrinando por várias cidades do Sul de Minas em baixo de sol escaldante ou tomando chuvas torrenciais... Mas a diversão era garantida, sobrando repertório de histórias a contar e se gabar para quem não foi...
Geralmente, essas incursões aventureiras eram realizadas em bando, com seis, sete, oito amigos – ocasionalmente até junto a pessoas que você nem sabia que existiam. O importante era planejar e programar – quase sempre mal engembrados – e encarar a missão. Pé na estrada, em carroceria de caminhões ou camionetes caindo aos pedaços, depois de horas pedindo carona à beira de estradas e rodovias. Quando havia algum minguado dinheiro, tinha-se o luxo de pagar a passagem de um ônibus intermunicipal. Não importava a forma, o objetivo era divertir-se.
Certa vez, saindo dos padrões de viajar em grupo, eu e Gílson Coelho, meu melhor amigo de infância e adolescência, resolvemos encarar a estrada sozinhos para assistir a um show musical numa festa promovida na cidade de Campos Gerais, um pequeno município mineiro que hoje deve estar alcançando pouco mais de vinte mil habitantes. Pra variar, o dinheiro no bolso era pouco... Muito pouco, mesmo. O suficiente para pagar as passagens de ida e volta em um ônibus não muito confortável. Ainda deu pra comer alguma coisa e comprar uma garrafa de Velho Barreiro. Era um bate-e-volta sem muitas pretensões. Saímos de Três Corações no início da tarde e programamos voltar de Campos Gerais no findar da noite, assim que a festa sinalizasse que iria acabar.
Era mês de julho. Naquela região, o frio desaba sobre as cidades do Sul de Minas Gerais. Há anos em que o frio congelante chega perto de zero grau em algumas localidades. E naquela noite o clima gelado em Campos Gerais estava paralisante. Com certeza os termômetros marcavam por volta dos oito ou sete graus centígrados. Apesar de nossas jaquetas, não estávamos preparados para tanto frio. O sofrimento era grande... E o pior, erramos os cálculos e, quando chegamos ao local considerado a rodoviária da cidade, o último ônibus para Três Corações já havia partido. Nos informaram que o próximo só sairia por volta das sete horas da manhã do dia seguinte.
A meia-noite badalava e não conseguíamos nos acomodar nos poucos bancos de metal do local. Isso sem contar com uma ventania gélida e constante que parecia lâminas de gelo cortando as nossas peles expostas. O sofrimento foi aumentando e resolvemos procurar algum local próximo onde eu e Gílson pudéssemos, pelo menos, nos proteger daquele vento glacial... E quem sabe até conseguir dormir um pouco à espera do desejado ônibus do dia seguinte.
Praticamente sem a presença de seres viventes na rua, andamos um pouco e chegamos a uma pequena edificação pintada de branco, cujas as largas portas estavam abertas e o seu interior bastante iluminado. Percebemos que era o necrotério da cidade e que funcionava como local de velórios. Estava vazio. Não havia nenhum defunto fresco naquela noite fria. Aproveitamos o aparente abandono do lugar e nos acomodamos em duas mesas de pedras de granito, assentadas em alvenaria. Paralelas e próximas uma da outra, deitamos nas duas “camas improvisadas”. Depois de muito sofrer e esforço para espantar o frio, conseguimos pegar no sono – correndo o risco de nem acordar com uma hipotermia.
O dia amanheceu. Fomos despertados pelo murmurinho de um bocado de gente curiosa, surpresa e parada em frente à porta do necrotério, tentando descobrir quem eram aqueles “novos defuntos” que teriam sido colocados sobre as pedras sem os devidos caixões. Eu e Gilson erguemos nossos troncos simultaneamente, quase de forma sincronizada, e fizemos a famosa saudação dos mineiros: “Ôooopa, tudo bão coceis?”. A correria foi grande. A pequena turba de curiosos desapareceu na debandada em meio à neblina que baixara sobre a cidade depois de uma longa noite de geada. Apesar do frio congelante, eu e Gílson não morremos e partimos vivinhos-da-silva para Três Corações. Mas até hoje deve ter gente em Campos Gerais contando que um dia dois defuntos fugiram de ônibus da cidade.
Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 1º de julho de 2025) – Foto: Pixabay – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com
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