
Brinquei muito quando era menino. Todo tipo de diversão possível e que eu possa me lembrar. Só coisa boa e que fica difícil esquecer. Pique-esconde, pique-bandeira, queimada (aqui no Nordeste recebe o nome de baleado), pique-cruzada, pula-carniça, seu rei mandou, bolinha-de-gude, amarelinha, fuzilado, bete (uma espécie de beisebol), mãe-da-rua (pique-estátua), biscoitinho queimado (tá quente e tá frio)... E os primeiros beijos e abraços nas meninas com as brincadeiras do passa-anel e do famoso pera-uva-maçã. Esses nomes são lá da minha região, no Sul de Minas Gerais, e devem ter denominações diferentes em outras partes.
Além de todas essas brincadeiras, ainda haviam outras atividades inerentes à infância e à adolescência. Subíamos em árvores, só por diversão ou para apanhar frutas; nadávamos no rio; jogávamos futebol (na rua ou em qualquer canto onde imaginávamos que a bola podia rolar); fazíamos disputas ou simples passeios de bicicleta; pescávamos; construíamos cabanas; simulávamos acampamentos; e até escalávamos paredões de terra nas áreas de erosão... Não faltavam opções e, principalmente, criatividade e fantasias.
Já na pré-adolescência, uma brincadeira mais recorrente era a de bandido-e-mocinho. Uma turba de meninos (alguns já caminhando para a fase de rapaz), que às vezes chegava a mais de vinte indivíduos, era dividida em dois grupos: um seriam os bandidos e o outro a turma da polícia. Usávamos roupas e adereços diversos (caixas de papelão descartadas), simulando capacetes, coletes à prova de balas, armaduras etc. Claro que não faltavam as armas de brinquedo: revólveres, espingardas, metralhadoras, espadas e facas... Um arsenal que nunca me agradou. Até hoje odeio armas. Mas, para a fantasia da brincadeira, eu abria uma exceção.
Apesar de todo esse aparato, na verdade as munições que utilizávamos eram mamonas atiradas por meio de estilingue (também conhecido como atiradeira, baleadeira ou bodoque) e, principalmente, laranjas, tangerinas e limões extremamente maduros (quase apodrecendo), que se estilhaçavam e lambuzavam o sujeito quando atingiam o alvo. O objetivo da brincadeira era eliminar o grupo adversário, “matando” ou prendendo quem preferia se entregar.
Num desses episódios de bandido-e-mocinho estava o menino Dagoberto, que chamávamos de Dagô. Era um garoto de oito ou nove anos – o caçula, o mais novo de todo o grupo que participava da brincadeira. Ele morava perto da minha casa. Era filho de uma jovem mulher que teria engravidado e colocada fora de casa pela família. Só moravam os dois e os rumores no bairro eram de que ela maltratava muito o filho. Dagô sempre era vítima de surras homéricas. E ninguém fazia nada. Se hoje com o Estatuto da Criança e do Adolescente e de instrumentos como o Conselho Tutelar a gente vê tanta barbaridade, imaginem isso no final dos anos de 1970!
E foi nesse episódio da brincadeira que fui “capturado” pelo grupo adversário, do qual Dagô fazia parte. Os mais velhos resolveram me amarrar a um poste de iluminação pública e ordenaram para que Dagô fosse o protagonista das “torturas” que passei. Amarrado, fui alvo de várias laranjas e limões que se espatifavam no meu corpo, principalmente no rosto e no tórax. Senti um ódio imenso e gritava ameaçando Dagô: “Quando eu sair daqui, vou te matar”. Mas só me soltaram do poste quando Dagô já estava bem longe, provavelmente em casa.
Passei uns dias à procura de Dagô para pegá-lo na rua e me vingar das torturas. Isso nunca aconteceu. Dias depois, veio a terrível notícia: Dagô estava morto. A informação oficial foi de que ele “morreu do coração” (infarto), mas, no burburinho do bairro, a história era de que a mãe o teria matado de tanto bater. Que eu me lembre, nunca ficou nada esclarecido. Fiquei com um imenso remorso, pois eu tinha dito que iria matá-lo... E ele morreu.
No velório, na casa de Dagô, todos ficaram espantados com o meu choro incessante próximo ao caixão. Eu não era da família, nem muito amigo de Dagô e nunca havia entrado na casa dele. O remorso corroeu minha alma. Me sentia culpado sem ter culpa alguma e passei a pensar que devíamos ter feito algo para salvar Dagô das garras da própria mãe. Na verdade, todos nós matamos Dagô.
Fonte: Espaço PB com jornal A União (texto originalmente publicado na seção Memorial, da edição do dia 3 de dezembro de 2024) – Foto: Pixabay – Contato: jorgerezende.imprensa@gmail.com
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